Aliados à voz luminosa da cantora, que saiu de cena em 1983, os arranjos irretocáveis e o repertório de alto nível fazem do disco um clássico atemporal. Capa do álbum ‘Alvorecer’, de Clara Nunes
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♫ MEMÓRIA
♪ É impressionante como Clara Nunes (12 de agosto de 1942 – 2 de abril de 1983) permanece viva na memória musical do Brasil! Morta há 41 anos, a cantora mineira ainda motiva a criação de sucessivos espetáculos de música e teatro em saudação a essa artista que pôs os pés na profissão na década de 1960, mas que se fez ouvir para valer somente a partir de 1971.
A trajetória luminosa de Clara foi consolidada em 1974 com o lançamento do sétimo álbum da cantora, Alvorecer, disco que completa 50 anos em 2024 como um dos títulos mais brilhantes da discografia brasileira.
Posto no mercado pela Odeon, gravadora na qual a cantora construiu discografia que foi de 1966 a 1982, Alvorecer foi o álbum que projetou definitivamente Clara Nunes no universo do samba, que fez o Brasil despertar para a beleza daquela voz de sabiá.
A conversão da cantora ao samba acontecera há três anos com o álbum Clara Nunes (1971), disco arquitetado pelo produtor musical e radialista Adelzon Alves. Adelzon remodelou a imagem e o repertório da cantora, que vinha tentando fazer sucesso desde a segunda metade da década de 1960.
Induzida por diretores da Odeon, Clara foi apresentada inicialmente como cantora de boleros. O fracasso da estratégia levou a cantora a flertar com a Jovem Guarda e com o pseudogênero rotulado como “música de festival”. Nada deu certo.
Clara se encontrou e encontrou um público somente quando teve o caminho profissional cruzado com o de Adelzon Alves. Além de ter criado a imagem de baiana estilizada com que Clara aparece na capa do álbum Alvorecer, em foto de palco que faz supor erroneamente que se trata de disco ao vivo, o radialista introduziu a cantora no universo das escolas de samba do Rio de Janeiro, sobretudo na Portela.
Nos domínios da agremiação carioca, à qual a cantora ficaria definitivamente associada, Clara ganhou a afeição de bambas portelenses como Candeia (1935 – 1978). Não por acaso, Candeia deu a Clara a primazia de lançar o samba Sindorerê no álbum Alvorecer.
Sindorerê é tema que versa sobre entidades de religiões de matriz afro-brasileira. Esse universo nortearia parte do repertório de Clara Nunes e também é evocado no álbum através do canto enérgico de Nanãe, Nanã Naiana (Sidney da Conceição), eco do Brasil colonial e escravocrata.
Contudo, é redutor creditar o sucesso da artista a esse universo mítico do Candomblé e da Umbanda. Basta ouvir as onze faixas do álbum Alvorecer para comprovar que Clara Nunes era cantora de horizonte musical que foi se ampliando a partir do definidor disco de 1971.
Embora o todo-poderoso da Odeon na época, Milton Miranda, tenha levado o crédito de produtor de Alvorecer, a beleza perene do álbum é fruto da união do canto esplendoroso de Clara Nunes, da produção de Adelzon Alves (creditado como coprodutor...) e da direção do maestro Lindolpho Gaya (1921 – 1987), que confiou as orquestrações e regências a João Donato (1934 – 2023), Helio Delmiro, Carlos Monteiro de Souza e Orlando Silveira. Todos os arranjos são irretocáveis.
E o que dizer do primoroso repertório? O álbum já merece lugar nobre na discografia brasileira somente pelos dois sublimes sambas que propagaram a esperança na voz de Clara.
Menino Deus abria o lado A da edição original de Alvorecer em LP. O samba é uma das pérolas mais reluzentes da parceria de Mauro Duarte (1930 – 1989) com o compositor e poeta Paulo César Pinheiro, autor da letra embebida em lirismo. Mauro e Pinheiro se tornariam nomes fundamentais na discografia de Clara a partir do álbum Canto de três raças (1976), o primeiro produzido por Pinheiro para a cantora com quem se casaria em 1975.
O outro samba de esperança era a música-título. Alvorecer abria o lado B do LP, apresentando a primeira obra-prima da então recente parceria formada em 1972 por Dona Ivone Lara (1922 – 2018) com Delcio Carvalho (1939 – 2013). O canto de Clara em Alvorecer é preciso, realçando o sentido exato de cada verso do samba.
Entre uma samba e outro, Clara Nunes também apresentou no álbum Alvorecer o belo e melancólico Samba da volta – música inédita de Toquinho e Vinicius de Moraes (1913 – 1980), com quem a cantora havia se juntado em show que correu o Brasil em 1973 – e Meu sapato já furou, animado samba de quadra do já mencionado Mauro Duarte em parceria com Elton Medeiros (1930 – 2019).
Em Alvorecer, Clara também cravou Punhal em forma de denso samba-canção, composição do então desconhecido Guinga com letra de Paulo César Pinheiro. Clara e o grupo MPB4 foram os primeiros nomes a dar vozes a Guinga, compositor que somente conquistaria prestígio a partir dos anos 1990 por conta da parceria com Aldir Blanc (1946 – 2020).
O lado A também trazia abordagem do samba O que é que a baiana tem? (1939), marco inicial do genial cancioneiro do compositor baiano Dorival Caymmi (1914 – 2008).
Aliás, foi em mergulho nas águas da Bahia que Clara gravou em Alvorecer o samba que a alçaria para sempre ao primeiro time das cantoras do Brasil. Parceria do pernambucano Romildo Bastos (1941 – 1990) com o paraense Toninho Nascimento, Conto de areia galgou as paradas do Brasil, chegando rapidamente ao topo e se tornando um dos maiores sucessos dos 17 anos de carreira fonográfica de Clara Nunes.
Ainda em território nordestino, mas já no universo do sertão, a cantora pegou Pau-de-arara (Luiz Gonzaga e Guio de Moraes, 1952) e mostrou que ia (bem) além do samba.
E é entre o tom de uma cantadora nordestina e o de uma sambista que a cantora gravou Esse meu cantar, música inédita do então também ascendente João Nogueira (1941 – 2000), compositor carioca que ainda legaria grandes sucessos à artista.
Enfim, Alvorecer é álbum brilhante que fez o Brasil despertar de vez para a luz de Clara Nunes. E o brilho do disco se conservou intacto ao longo desses 50 anos.
Publicada por: RBSYS