Resenha de show
Título: Uivo – Um voo sem proteção
Artistas: Cida Moreira e Helio Flanders
Local: Manouche (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 19 de abril de 2024
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ Ícone da Geração Beat dos anos 1950, o poeta e escritor norte-americano Allen Ginsberg (1926 – 1997) estava internado em hospital psiquiátrico quando, em 1956, escreveu Uivo. Alçado à condição de manifesto do Movimento Beat, o poema tem atravessado décadas, ecoando nas mentes que habitam mundo cada vez mais doente.
Decorridos 68 anos da escrita, o poema de Ginsberg norteia Uivo – Um voo sem proteção, show inédito que reuniu Cida Moreira e Helio Flanders no palco do clube Manouche neste fim de semana.
Apresentado nas noites de sexta-feira e sábado, 19 e 20 de abril, o show foi idealizado para celebrar os seis anos desse clube carioca com ar de cabaré que, sob a curadoria de Alessandra Debs, tem aberto a casa e o coração para artistas que transitam pelo wild side do mundo da música, casos de Cida Moreira – cantora paulistana que personifica a saloon singer brasileira e que desde 2019 encontrou na casa um porto seguro na cena carioca – e de Helio Flanders, vocalista do grupo mato-grossense Vanguart que tem desenvolvido paralela carreira solo com os pés e a alma na contracultura.
Irmanados em cena densa, Cida (no canto e no piano) e Flanders (no canto, no trompete e no violão) planaram alto na rede de música e poesia que protegeu o show da banalidade do mundo lá de fora. Foi um voo sem limites dentro do quadrado mágico do palco.
Por mais que tenha havido certa insegurança, natural de toda estreia, o show transcorreu sem erros, sedutor, desde o número de abertura, Uivo (Vitor Ramil, 2020), com Cida ao piano e Flanders entrando pela plateia com o sopro de um trompete que exalou a melancolia que se entranharia por todo o roteiro.
Cida Moreira e Helio Flanders no show ‘Uivo – Um voo sem proteção’
Rodrigo Goffredo
Entre toques de piano, violão e trompete, cantos de músicas como Forasteiro (Helio Flanders e Thiago Pethit, 2010) e récitas de versos como “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa”, os artistas teceram em cena uma teia delicada que envolveu e enredou o espectador.
Foi como se, ao dar vozes a compositores do wild side como a Angela Ro Ro de Não há cabeça (canção de 1979 ouvida na voz rascante de Cida) e o Lou Reed (1942 – 2013) irônico de Perfect day (canção de 1972 ouvida em harmonioso dueto), Cida Moreira e Helio Flanders transitassem juntos, mas também solitários, por “incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvens convulsas e relâmpagos na mente”.
Seja quando Flanders soprou no canto e na gaita que a resposta estava no vento ao reviver a canção folk Blowin' in the wind (Bob Dylan, 1963), seja quando Cida fez Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971) navegar por águas profundas, o show Uivo manteve afiada a lâmina poética das canções e dos textos.
Entre solidões e silêncios, os artistas se harmonizaram na reflexão de Dentro do tempo que eu sou (2015), canção composta por Flanders com inspiração em Cida e gravada pelo cantor com a dama do cabaré no primeiro álbum solo, Uma temporada fora de mim (2015).
Ainda há tempo, como sentenciou o verso dessa canção de Flanders. E a crença em trazer de volta os velhos tempos moveu a lembrança de All the world is green (Tom Waits, 2002), canção em que as vozes dos cantores se encontraram no melodioso refrão.
Em Uivo, Cida Moreira e Helio Flanders também se encontraram à beira do abismo, à margem da vida e da estrada. O que legitimou a escolha de canções como a homoerótica Romeo (2014) – parceria de Flanders com Thiago Pethit, outro artista do wild side – e a abertura do livro Uivo e outros poemas (1956) para a récita do poema Um supermercado na Califórnia por Flanders.
Se She (1994) – canção de Marianne Faithfull e Angelo Badalamenti lançada há 30 anos na voz de Marianne – reverberou no canto de Cida Moreira acompanhada por leitura de trecho de texto já dito pela artista no espetáculo A dama indigna (2011), Life on mars? (David Bowie, 1971) fez o show atingir os céus com os agudos de Flanders. Já Nostradamus (Eduardo Dussek, 1980) ecoou no canto de Cida com retrato do apocalipse existencial do século XXI.
No bis, breve citação de Perfeição (Renato Russo, 1993) antes do canto em duo do Youkali tango (Roger Farney e Kurt Weill, 1934) reiterou que, mesmo à beira do abismo e com a esperança dispersa, Cida Moreira e Helio Flanders mantêm as portas e os corações abertos para o amor, a música e a poesia que protegeu artistas e público na rede acolhedora do show Uivo.
Cida Moreira canta e toca piano no show ‘Uivo – Um voo sem proteção’
Rodrigo Goffredo
♪ Eis o roteiro seguido por Cida Moreira e Helio Flanders em 19 de abril de 2024 na estreia do show Uivo – Um voo sem proteção no clube Manouche, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Uivo (Vitor Ramil, 2020)
♪ Leitura de trecho do poema Uivo (Allen Ginsberg, 1956)
2. Forasteiro (Helio Flanders e Thiago Pethit, 2010)
3. Blowin' in the wind (Bob Dylan, 1963)
4. Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971)
5. Dentro do tempo que eu sou (Helio Flanders, 2015)
♪ Leitura do poema Canção / O peso do amor (Allen Ginsberg, 1956)
6. All the world is green (Tom Waits, 2002)
7. Romeo (Helio Flanders e Thiago Pethit, 2014)
8. Não há cabeça (Angela RoRo, 1979)
♪ Leitura do poema Um supermercado na Califórnia (Allen Ginsberg, 1956) por Helio Flanders
9. She (Marianne Faithfull e Angelo Badalamenti, 1994)
♪ Leitura de texto por Cida Moreira
10. Life on mars? (David Bowie, 1971)
11. Perfect day (Lou Reed, 1972)
12. Nostradamus (Eduardo Dussek, 1980)
Bis:
13. Perfeição (Renato Russo, 1993) – citação
14. Youkali tango (Roger Farney e Kurt Weill, 1934)
Helio Flanders toca trompete no show ‘Uivo – Um voo sem proteção’, feito com Cida Moreira no Manouche, no Rio de Janeiro (RJ)
Rodrigo Goffredo
Publicada por: RBSYS