No palco onde debutou como ‘bichinha assustada’, artista canta The Cure como Billie Holiday e revela bela melodia de Zé Renato feita para álbum que o intérprete apronta com músicas de Zeca Baleiro. Edson Cordeiro no palco do Teatro Rival Petrobrás na estreia do show ‘Cantor’ na noite de ontem, 12 de setembro
Marcelo Castello Branco / Divulgação Teatro Rival Petrobrás
♫ OPINIÃO SOBRE SHOW
Título: Cantor
Artista: Edson Cordeiro
Data e local: 12 de setembro de 2024 no Teatro Rival Petrobrás (Rio de Janeiro, RJ)
Cotação: ★ ★ ★ ★
♪ Dono de opulento registro de contratenor que o possibilita transitar com naturalidade dos timbres agudos aos graves, Edson Cordeiro sempre personificou a apoteose da voz. Projetado a partir de 1990 na cidade do Rio de Janeiro (RJ), o cantor paulista ainda se escora nessa voz. Tanto que Cantor é o título do show que trouxe Cordeiro de volta aos palcos cariocas na noite de ontem, 12 de setembro.
Aos 57 anos, Cordeiro já deixou de lado as acrobacias vocais dos dois primeiros grandes espetáculos da carreira, encenados em 1990 e 1992, sob direção de Jorge Fernando (1955 – 2019), com exuberante teatralidade. Mas a voz ainda está lá, abundante e expressiva, como ficou claro para o público que foi vê-lo ontem Teatro Rival Petrobrás, casa já nonagenária onde o cantor se apresentou em concorridas temporadas no início da carreira, nos anos 1990, quando ainda era “uma bichinha assustada”, como o próprio Cordeiro se caracterizou ontem no mesmo palco.
Ao contrário de outros contratenores, dotados de canto mais mecânico, Cordeiro entende o sentido e o sentimento de cada canção. Por vezes até recorre ao exibicionismo vocal e carrega nos tons, como no Fado tropical (Chico Buarque e Ruy Guerra, 1973) feito no bis, mas quase sempre acerta.
Edson Cordeiro divide o palco do Teatro Rival Petrobrás com o pianista Paulo Braga que faz dois solos no show ‘Cantor’
Marcelo Castello Branco / Divulgação Teatro Rival Petrobrás
No show Cantor, Cordeiro vai do recital ao cabaré na companhia do grande pianista Paulo Braga, cujo toque econômico se revelou sempre preciso, sem nota jogada fora. A parte inicial do show foi feita em clima camerístico com refinamento.
“Mesmo antes de eu chegar, a minha voz me anuncia”, ressaltou Cordeiro ao dar voz ainda na coxia aos versos iniciais de Cantor (Renato Teixeira, 1980), primeira música de roteiro que também enalteceu o canto em Voz de mulher (Sueli Costa e Abel Silva, 1988).
“Ai, que saudade!”, gritou uma espectadora, traduzindo no berro o sentimento da plateia. Por estar vivendo há 17 anos na Alemanha, o cantor virou presença ocasional nos palcos do Brasil, onde está de passagem para gravar o 14º álbum, Cordeiro canta Baleiro, dedicado ao cancioneiro autoral do compositor Zeca Baleiro e já quase pronto.
Além de cantar o Tango do Cordeiro (Zeca Baleiro, 2023), já lançado em single em novembro do ano passado, o intérprete deu spoiler de bela e ainda inédita canção do álbum, O canto em nós, formatada com (inspirada) melodia de Zé Renato e letra de Baleiro. A canção parece ter vocação para se tornar um standard entre os intérpretes.
Antes, Cordeiro reviveu Por um fio (José Miguel Wisnik e Paulo Neves, 1996) – música que lançou há 28 anos no álbum Terceiro sinal (1996) – e quebrou a angústia melancólica de Um favor (Lupicínio Rodrigues, 1972) ao conclamar a plateia a gritar o nome do marido alemão, Oliver Bieber, após o verso “Quem puder gritar que grite”, em interação fora do tom desesperado da música.
O grande intérprete voltou a reinar absoluto em cena na precisão do canto triste de Assum preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1950) em número antecedido por récita de poema de João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999), A Antonio Mairena, cantador de flamenco.
Edson Cordeiro com o segundo dos três figurinos do show ‘Cantor’
Marcelo Castello Branco / Divulgação Teatro Rival Petrobrás
Intérprete apto a se transformar em outros ao longo de um show, Cordeiro adotou apropriado tom angelical no canto de I have a dream (Benny Andersson e Björn Ulvaeus, 1979) – música pacifista do grupo ABBA abordada pelo artista em single editado em janeiro – e cantou sucesso da banda britânica The Cure, Lovesong (Robert Smith, 1989), como se fosse Billie Holiday (1915 – 1999). Assim como, mais para o fim do show, o cantor caiu no samba Pop popular (1992) – feita para Cordeiro por Eduardo Dussek – como se fosse Carmen Miranda (1909 – 1955), com direito aos trejeitos da Pequena notável.
Antes, Cordeiro cantara Mon dieu (Charles Dummont e Michel Vaucaire, 1960), sucesso da cantora francesa Edith Piaf (1915 – 1963), tendo em mente a interpretação de Bibi Ferreira (1922 – 2019) no musical de teatro Piaf – A vida de uma estrela da canção (1983). E deu voz grave e circunspecta a uma canção alemã, Ich weiss es wird (Alfred Jarry e Bruno Balz, 1942) que, numa virada de jogo, se tornou hino de resistência gay mesmo tendo sido escrita forçosamente para exaltar o nazismo pelo letrista Bruno Balz (1902 – 1988), então feito prisioneiro e refém da Gestapo por ser homossexual.
Mais para o fim, o show vai ganhando contornos de espetáculo de cabaré, com Cordeiro circulando pela plateia enquanto cantava Saudade da minha terra (Belmonte e Goiá, 1969) e soando por vezes histriônico em bloco nordestino que alinhou o baião-soul Coroné Antonio Bento (João do Vale e Luiz Wanderley, 1970), o coco A mulher que virou homem (Jackson do Pandeiro e Elias Soares, 1961) – tema jocoso, mas visionário, sobre mudança de gênero, como ressaltou o cantor – e Baioque (Chico Buarque, 1972).
Com a voz ainda apoteótica, Edson Cordeiro é contratenor talhado para quem gosta de intérpretes imponentes como Dalva de Oliveira (1917 – 1972) – de cujo repertório o cantor iluminou Estrela do mar (Marino Pinto e Paulo Soledade, 1952) com a particularidade evocar uma estrela do mar com o movimento das mãos ao fim do canto da marcha-rancho – e Edith Piaf.
Nesse sentido, o título do show, Cantor, já diz tudo. E, sim, mesmo sem os malabarismos e a potência dos anos 1990, Edson Cordeiro é um senhor cantor.
Publicada por: RBSYS