Capa do álbum ‘Sandra!’ (1990), de Sandra de Sá
Jejo Cornelsen
♫ MEMÓRIA
♪ Nelson Motta está em tempo de balanço por conta dos 80 anos que festejará em 29 de outubro. No inventário de sucessos e fracassos, o jornalista, compositor e produtor musical lembra hoje, em coluna publicada no jornal O Globo, o fracasso comercial do álbum que criou para Sandra de Sá em 1990.
Sandra! não foi disco totalmente ignorado pela imprensa, como sustenta Nelson no texto da crônica. Este colunista, na época crítico musical do mesmo jornal O Globo, fez resenha elogiosa do álbum formatado sob direção musical de Guto Graça Mello e, no embalo, assinou reportagem de capa no suplemento cultural Segundo caderno quando, algum tempo depois, a cantora estreou no Canecão, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), o show do disco idealizado por Nelson Motta.
Contudo, o cronista tem razão em apontar o descaso da gravadora BMG com o álbum, também prejudicado pelo colapso econômico sofrido pelo Brasil naquele ano de 1990 por conta do confisco da poupança dos brasileiros pelo (des)governo do então presidente Fernando Collor.
É que, ao longo dos anos 1980, a gravadora RCA – companhia fonográfica tornada BMG-Ariola em 1987 – viveu sob a hegemonia da dupla de compositores Michael Sullivan e Paulo Massadas.
Sob a direção artística de Miguel Plopschi, o elenco da RCA / BMG era incentivado a gravar músicas de Sullivan & Massadas. A própria Sandra de Sá alcançou pico de popularidade e vendas no binômio 1986 – 1987 com o álbum de 1986 em que deu voz a (grandes) músicas de Sullivan & Massadas.
Só que Sandra – cantora e compositora carioca egressa do universo do funk e do soul brasileiro, revelada em escala nacional ao defender a música autoral Demônio colorido no festival MPB-80, da TV Globo – quis virar a mesa e o jogo com o disco feito com Nelson Motta. E foi aí que a gravadora cruzou os braços sem promover o álbum em que Sandra de Sá se renovou.
Lançado no segundo semestre de 1990, o álbum Sandra! rejeitou a eficiente (mas engessada) fórmula do sucesso de BMG com repertório de alto nível, composto por músicas de Arthur Hamilton, Cassiano (1943 – 2021). Cazuza (1958 – 1990), Jorge Ben Jor e Roberto Frejat, entre outros compositores brasileiros e norte-americanos.
O álbum Sandra! se revelou tão sofisticado quanto aliciante, mas era biscoito fino demais para a massa. A começar por Slogan (1973), funk de autoria de Cassiano, imortal estilista do soul nacional que gravara a música há 17 anos no segundo álbum solo, Apresentamos nosso Cassiano (1973). O charme da gravação de Sandra foi a junção da cantora com Djavan e Marina Lima em trio harmonioso.
Do mesmo álbum Apresentamos nosso Cassiano, Sandra e Nelson Motta recuperaram o funk folião Cinzas, arranjado no melhor estilo Black Rio por Serginho Trombone (1949 – 2020) com direito a gritos de guerra dos bailes da pesada.
Na mesma linha black, mas com outra pegada, a regravação do funkaço Eu quero alguém (1989) escancarou a urgência verborrágica de Cazuza, letrista da música de Renato Rocketh, gravada com toque de rap.
Afropop de Guto Graça Mello e Ronaldo Barcellos, Mandela celebrou a então recente liberdade do ativista político africano Nelson Mandela (1918 – 2013), que saíra da prisão em fevereiro de 1990 para continuar a luta contra o apartheid, câncer que seria extirpado da África em 1994.
Com os olhos voltados para o apartheid social do Brasil, Sandra deu voz a Charles Anjo 45 (Jorge Ben Jor, 1969) com o baticum do grupo afro-baiano Olodum, erguendo ponte que ligou as comunidades cariocas ao Pelourinho, epicentro do orgulho negro de Salvador (BA).
Duas versões em português de canções norte-americanas – ambas escritas por Nelson Motta – mantiveram a classe do álbum em tons serenos. Como um rio era versão de Cry me a river (Arthur Hamilton, 1953), balada jazzy e bluesy popularizada na gravação lançada em 1955 pela cantora norte-americana Julie London (1926 – 2000).
Já Love will lead you back (1989) era balada então recente da compositora Diane Warren que virou Quem é você na voz aveludada de Sandra, faixa feita por sugestão do executivo Mariozinho Rocha para a trilha sonora da novela Mico preto (TV Globo, 1990) e, por isso mesmo, escolhida pela BMG para promover (sem real empenho da gravadora) o álbum nas rádios e TVs.
Ainda dentro das fronteiras musicais dos Estados Unidos, a cantora gravou dois blues no disco, um em bom português e outro no original em inglês. Ninguém comigo agora era blues inédito de Roberto Frejat, roqueiro que sempre cultuou o gênero like a rolling stone. Já Send to me the electric chair (George Brooks, 1927), era blues feminino, altivo, empoderado, amplificado na voz de Bessie Smith (1894 – 1937).
Não bastasse a alta qualidade do repertório do álbum, encerrado com a balada Imensamente só (Reinaldo Arias e Nelson Motta), flash lindo e melancólico de fim de festa, Sandra de Sá estava no auge da forma vocal em 1990, elevando os tons quando necessário, mas dosando o canto com a sofisticação das grandes intérpretes.
Completaram o álbum o pop funk Arrocho (Mu Chebabi, Hubert e Robertinho Freitas) e Blue eyes (Jorjão Barreto e Ronaldo Barcellos), balada soul que soou similar a tantas gravadas antes pela artista.
Com o fracasso comercial do disco, Sandra de Sá voltou às fórmulas batidas da gravadora no álbum posterior, Lucky! (1992), sem o sucesso da década de 1980, mas sempre tentando – na medida do (im)possível no ambiente da gravadora – fazer se ouvir com a própria voz, uma das mais calorosas e potentes da música brasileira.
E o fato é que Sandra! é grande álbum legado para a posteridade por essa artista que fará 70 anos em 2025. Tanto que, vendas à parte, o disco deve ser contabilizado no saldo de sucessos de Nelson Motta. O fracasso foi comercial, jamais artístico. E, sim, o tempo, senhor absoluto da razão, ainda há de fazer justiça a Sandra!.
Sandra Sá, que fará 70 anos em 2025, tem na discografia um grande e injustiçado álbum idealizado por Nelson Motta
Karyme França / Divulgação
Publicada por: RBSYS